Após visita feita pela reportagem ao Centro de Recuperação Leão de Judá, a unidade teve o alvará sanitário cassado
Em funcionamento há dez anos no Estado, o Centro de Recuperação Leão de Judá é mais uma das Comunidades Terapêuticas (CTs) prestes a assinar contrato com a Secretaria Nacional Antidrogas (Senad-MJ). O valor global do convênio, que tem duração de um ano, é de R$ 720 mil, a ser pago em parcelas mensais de R$ 60 mil, pelas 60 vagas ofertadas. A instituição já foi qualificada nas fases 1 e 2 e só falta assinar o contrato.
Internos trabalham e rezam para serem "curados" da dependência fotos: Kléber a. Gonçalves
Na casa onde funciona, no Parque Leblon, em Caucaia, faltam locais apropriados para dormir, cozinhar, praticar exercícios e, até mesmo, gente capacitada para ministrar o processo terapêutico dos que ali estão. A capacidade de abrigamento é de 35 pessoas, mas no dia da visita da equipe de reportagem do Diário do Nordeste e da Comissão de Políticas sobre Drogas da OAB-CE havia 57 internos. São eles que preparam o alimento em um fogareiro improvisado no terreno. Há beliches no local, mas boa parte dos internos dormem em redes na varanda ou em colchões sobre o chão.
As inúmeras irregularidades impressionaram também a equipe do Ministério Público do Estado (MPE), da comarca de Caucaia, que esteve presente para fins de fiscalização da unidade, no dia 24 de julho. "As irregularidades são inúmeras, desde a segurança a questões de higiene, além da ausência do alvará de funcionamento, mas vamos investigar e analisar se a falta de estrutura é proposital ou não", declarou a promotora Karine Leopércio.
Durante a visita, os olhos atentos dos internos não deixavam de acompanhar a equipe de reportagem. Era como se existisse algo mais, além do que a equipe pudesse ver. Até que nos foi deixado no chão, discretamente, um bilhete cujo o começo era o seguinte: "Existem tantas irregularidades aqui, que vocês não têm noção...". A equipe tentou entrar em contato através do e-mail deixado no verso bilhete, porém, até a semana passada, nenhum retorno foi dado.
Para os nove itens que a Vigilância Sanitária elencou exigindo a necessidade de mudanças imediatas, como adaptação da cozinha, no refeitório, lavanderia e dormitórios, ficou estabelecido um prazo de 30 dias
Após a visita, a comunidade teve seu alvará sanitário cassado, este era válido até agosto 2013. Segundo Karine, o MP-Caucaia notificou a Comunidade, e, no último dia 31 de julho, reuniu-se com a vice-presidência da Leão de Judá, Cristiane Ramires.
Irregularidades
Na ocasião, foi assinado um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) e estabelecido prazos para que a casa possa sanar as irregularidades. De acordo com Karine, foram dados dez dias para que a CT apresente a documentação que comprova sua inscrição no Conselho Municipal Antidrogas (Comad-Caucaia) e o requerimento de renovação do alvará sanitário.
Para os nove itens que a Vigilância Sanitária elencou exigindo a necessidade de mudanças imediatas, tais como adaptação da cozinha (pois os internos cozinham em um fogareiro no chão), adaptações também no refeitório, lavanderia e dormitórios (internos dormem em redes na varanda e em colchões no chão), ficou estabelecido um prazo de 30 dias.
Já a apresentação do termo de qualificação e responsabilidade do responsável técnico da casa, assim como o certificado de capacitação dos monitores ou declaração que estão sendo capacitados na área, devem ser apresentados também em 30 dias. Foi estipulado um prazo de 20 dias para que a comunidade organizasse as fichas dos internos.
O centro de recuperação ofertou 60 vagas ao Senad-MJ, quando na verdade sua capacidade é para 35 internos. O coordenador da comunidade, Carlos David Inácio Rosendo, é um ex-morador de rua, que deixou esta situação após fazer tratamento na unidade. Ele mora na comunidade e não possui formação superior ou curso de capacitação. Como pagamento, recebe uma cesta básica e mais R$ 300, dos quais manda R$ 50 para a família que reside no Maranhão.
Como justificativa para a situação em que se encontra a casa, a secretária da CT, Roseane Ramires, informou que a Comunidade vive de doações, e por isso, a dificuldade de adequação. Porém, no dia 5 de junho de 2012, a comunidade assinou contrato com o Secretaria da Saúde do Estado (Sesa), no valor de R$ 126 mil, válido até o dia 31 de dezembro de 2012.
Eram pagas parcelas mensais de R$ 21 mil. O convênio em questão foi prorrogado até o dia 31 de janeiro de 2013, e o valor da parcela alterado para R$ 18 mil. Já no último dia 26 de junho, a instituição assinou novo convênio com a Sesa, no valor global de R$ 108 mil, a serem pagos em seis vezes de R$ 18 mil para a execução do Projeto Resgate de Vidas: Recuperação e Reintegração Social.
Além desta fonte, a Leão de Judá tem um telemarketing, desde de 2005, para obter doações para a casa. A unidade possui também uma escala diária de vendas de canetas e pastilhas, comercialização feita pelos internos da casa nas ruas de cidades da Região Metropolitana de Fortaleza (RMF). Segundo a secretária da Leão de Judá, a ação é para ajudar a obra da comunidade.
Sobre a qualificação desta comunidade nas fases do edital da Senad-MJ, a presidente da Comissão Especial de Avaliação do Senad-MJ, Nilma Maria de Andrade, explicou que todas as instituições qualificadas passaram por uma avaliação da documentação enviada.
Edital
Ou seja, o MJ não conferiu in loco nenhuma comunidade participante do edital. De acordo com Nilma, essa verificação não foi feita por conta da carência de pessoal para esta fiscalização. "Porém, vamos fiscalizar cada uma logo após a assinatura de todos os contratos deste primeiro edital. Na verdade esta fiscalização já começou, a primeira comunidade visitada localiza-se no Rio Grande do Sul".
Outro ponto citado foi que para todas as comunidades pré-qualificadas, um dos requisitos exigidos pelo edital era o envio de parecer do conselho estadual ou municipal sobre drogas, a partir de visita à comunidade.
OPINIÃO DO ESPECIALISTA
Financiar demandas religiosas
O objetivo maior do governo federal com o programa ´Crack é Possível Vencer´ não parece ser o cuidar das pessoas, e sim atender as pressões da sociedade, na medida em que não há investimentos efetivos na rede assistencial, nos serviços de assistência psicossocial, ambulatórios sociais e outros serviços. Existe uma rede de atenção psicossocial e um trabalho de redução de danos que está sendo pouco reconhecido e estimulado. Há muito mais o interesse em financiar demandas religiosas, predominantemente evangélicas. O Brasil está na contramão da história. Está mais do que provado que a política da repressão, a chamada guerra às drogas, se mostra ineficaz e acaba aumentando o poder do tráfico e por consequência, da dependência química como questão política e social. A questão é que determinados segmentos autoritários e conservadores estão aí vendendo a internação compulsória, a solução e o tratamento para dependência química. O que está sendo demonstrado, na verdade, é um visível apoio à bancada evangélica.
Estes locais, que muitas vezes são depósitos de gente, se intitulam de ´Comunidades Terapêuticas´, desde aí já são uma fraude, pois tentam usar um projeto respeitado para vender uma falácia. O conceito de comunidades terapêuticas é onde todos, internos, profissionais e funcionários, participam da comunidade, contribuem para a evolução do tratamento.
O que vemos aí é um retorno aos manicômios, é a perda da cidadania, são famílias devendo favores a políticos em busca de uma vaga nestas casas. As igrejas estão ocupando espaço no campo de tratamento, criam um mercado com os valores morais e religiosos das pessoas.
A questão é que pessoas humildes acabam pedindo ajuda às igrejas, mas acabam tornando-se também reféns das mesmas. Algumas dizem que não cobram para entrar, mas as pessoas não saem se não pagar.
dn