Em 2014, a paleontóloga Taissa Rodrigues, pesquisadora e professora
da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), navegando pelo site
americano de vendas eBay, encontrou um anúncio que chamou atenção: um
esqueleto quase completo de pterossauro, o Anhanguera santanae, sendo
colocado para leilão por cerca de US$ 250 mil, por uma empresa
localizada em Charleville Mézières, na França. Após acionar o Ministério
Público Federal (MPF), uma longa investigação começou e, no início
deste ano, o órgão anunciou que este exemplar e mais 45 peças da região
do Cariri serão repatriadas. Porém, o que intriga é a facilidade de
encontrar uma parte da nossa história à venda no exterior.
O Decreto Lei Nº 4.146, de 1942, determina que os fósseis são
propriedade da União. Ao contrário de alguns países, como Estados
Unidos, Alemanha e Reino Unido, a compra e venda desses achados, no
Brasil, são proibidas. Sua extração depende da autorização prévia da
Agência Nacional de Mineração - antigo Departamento Nacional de Produção
Mineral (DNPM). A pena para quem comercializa as peças varia de um a
cinco anos de prisão.
Compra
A equipe de reportagem do Sistema Verdes Mares foi até os municípios
de Nova Olinda e Santana do Cariri. Nas duas cidades há cerca de 92
frentes de exploração de calcário laminado, onde é encontrada a maioria
dos fósseis da região.
Nesses locais, é fácil ter uma ideia do que pode ser a ponta do
iceberg de um problema histórico: o tráfico destas peças. A facilidade
para comprar um exemplar é nítida.
Apresentando-se como turistas, membros da equipe de reportagem foram
até alguns pontos onde são encontrados, com mais facilidade, os fósseis.
Em uma das minas de exploração foi possível comprar um fóssil de
Dastilbe crandalli, peixe de água doce que viveu entre 96 a 113 milhões
de anos (cretáceo inferior), por apenas R$ 20. A compra rendeu ainda o
brinde de um exemplar de um Heteroptera (barata d'água).
Em Santana do Cariri, a reportagem flagrou um homem que mostrou em
seu piso o que seria um osso de dinossauro. "Isso aqui é uma junta.
Continua em outra pedra", explicou. Morador da localidade, ele
demonstrou conhecimento acerca da ilegalidade nos negócios feitos por
meio da venda de fósseis. "Se tirar uma pedra daqui e comercializar,
você vai se encrencar", alertou.
Na CE-166, que liga Santana do Cariri a Nova Olinda, há várias minas
de exploração de calcário laminado. Antes de chegar a uma delas, a
equipe abordou um morador:
- É fácil comprar? - perguntamos.
- É e não é. Essa "pedra" é encontrada direto por aí, mas é
fiscalizada pela Polícia Federal. O pessoal quando acha, fica em sigilo.
- Então é ilegal vender? - indagamos.
- É porque assim, dizem que é uma coisa da natureza. Os funcionários
(das minas) quando encontram, ficam todos caladinhos. Passam um 'fio'
para um cara aí, ele vem, bota tanto (valor), outro bota tanto, e a
acabam levando. É proibido vender. É caro, dependendo da peça. Se achar
um osso. Muitas vezes o cara encontra jacaré, pterossauro. Ah, meu
amigo, teve cara aí que ficou milionário e sumiu do dia pra noite -
confirma o morador.
Mais à frente, na chamada Mina de Idemar, a equipe se identificou,
mais uma vez, como turistas que queriam levar uma "lembrança" para casa e
indagou se havia alguma "pedra" - como costumam chamar os moradores -
disponível. Rapidamente, com poucos questionamentos, um funcionário da
mina interrompeu o seu almoço e disse:
- Peixe? Tem. Aqui mesmo tem um - falou, apontando para o piso.
Depois, se retirou até uma outra sala, na área interna.
- Vou pegar peixe pra vocês. Senta aí. Fica à vontade - completou.
Em seguida, o funcionário acompanhou a equipe até outra sala, onde
havia diversos armários. Assim que todos entraram, o homem apontou para
um fóssil e explicou:
- Isso aqui não é meu não. Agora, isso aqui é raro. Os pesquisadores
quando veem, ficam loucos. Um vegetal, de ano em ano, você encontra um.
Trabalho aqui há 10 anos. Faz tempo que vi desse aqui - conta, após
mostrar um peixe em suas mãos.
- Podemos pegar? - perguntamos.
- Pode. Pode levar esse peixe aqui. E vocês podem ver que tem um
peixe aqui também. Tem que esculpir com as ferramentas - explica,
apresentando outra pedra.
- Demora para preparar isso aqui? - continuamos.
- Uma meia hora. Quer levar ele? - ofereceu o funcionário da mina.
Depois da recusa, ele mostrou a pedra com o que acreditava ser uma
borboleta. Em seguida, orientou que as peças fossem molhadas para os
fósseis ficarem mais visíveis.
- Muito raro encontrar um (peixe) desses. Olha o osso. A pedra também é resistente - disse como quem faz uma propaganda.
- E como a gente faz? - questionamos.
- Você me dá um agrado. Vinte conto mesmo - disse o funcionário.
Em seguida, entregou outra peça identificada como barata d'água.
- Esse aí pode levar. E se quiser mais peixe, eu consigo - garantiu o vendedor, antes de se despedir.
Após a aquisição dos fósseis, a equipe do Sistema Verdes Mares
entregou o material colhido em Nova Olinda ao Laboratório de
Paleontologia da Universidade Regional do Cariri (Urca). O paleontólogo
Álamo Feitosa identificou os animais e entregou um termo de recebimento.
Ao longo das últimas três semanas, a equipe de reportagem também
tentou contato, por telefone, com a Delegacia da Polícia Federal em
Juazeiro do Norte.
Questionamentos foram enviados por e-mail, e um repórter foi à
própria Delegacia, mas não conseguiu falar com a delegada Josefa Maria
Lourenço que, por meio dos secretários, afirmou "estar muito ocupada".
Importância histórica
A Bacia do Araripe se tornou um dos principais alvos do tráfico de
fósseis no mundo, por causa da preservação do material. "Houve
coincidências geológicas e ambientais que preservaram os fósseis,
mantendo as partes moles, mais delicadas, como músculo, pele, conteúdo
estomacal, parasitos", explica Álamo Feitosa.
No local, podem ser encontrados diversas espécies de insetos,
moluscos, grupos de plantas, peixes, anfíbios, tartarugas, lagartos,
dinossauros, pterossauros, crocodilos, aves e pequenos mamíferos. "Os
fósseis aqui são usados como modelo para o mundo todo", completa Álamo.
De acordo com o paleontólogo, o transporte destas peças para o
exterior é antigo. Em 1800 já há registros feitos pelo naturalista João
da Silva Feijó, que veio ao Cariri a mando da Coroa Portuguesa, para
relatar a singularidade dos fósseis. À época, enviou duas coleções ao
Rei de Portugal.
Só a partir do último século, na década de 1940, que o material
coletado começou a ser depositado no antigo DNPM. Porém, nos anos de
1960, Santana do Cariri tinha feiras livres de fósseis vendidos nas
calçadas e praças, e enviados para São Paulo.
"A ponte era Santana do Cariri, Juazeiro do Norte, São Paulo e
exterior. Assim saíram muitos pterossauros, dinossauros, peixes,
tartarugas para a Europa, os Estados Unidos e o Japão", conta Álamo.
Com a criação do Museu de Paleontologia em Santana do Cariri, nos
anos 1980, pelo professor Plácido Cidade Nuvens, posteriormente cedido à
Urca, foi que começou a se investir em pesquisa em Paleontologia. Nos
anos 1990, criou-se o laboratório deste mesmo setor e o núcleo de
pesquisa na Instituição que, a partir de então, ficou responsável pela
descrição de dezenas de espécies descobertas no Cariri.
Prisões
Apesar de ter sido mais comum nas décadas de 1980 e 1990, o tráfico
de fósseis ainda acontece na região. De 2012 a 2017, a Delegacia Federal
de Juazeiro do Norte apreendeu 111 fósseis, prendeu/indiciou 19 pessoas
e abriu 13 inquéritos.
Em outubro de 2013, a Polícia Militar deteve um caminhão carregado
com 27 peças em Pedreira (SP). O veículo teria sido carregado em Nova
Olinda e aguardava o destino final. Antes disso, o motorista confessou
aos agentes de segurança que já havia feito outras entregas deste tipo,
mas com destino a Curvelo (MG).
Já em 2014, uma operação da Polícia Federal de Minas Gerais recolheu
quase 2 mil peças da região do Cariri com uma quadrilha internacional.
Entre o material, estava um esqueleto completo de pterossauro, que se
encontra na Universidade de São Paulo (USP).
Ao todo, 13 pessoas estariam envolvidas, sendo oito brasileiros, três
alemães e dois franceses. Dentre eles, estava o alemão Michael
Schwickert, conhecido da Polícia Federal. Ele já foi indiciado três
vezes por tráfico de fósseis no Brasil. A carga apreendida iria, dentro
de contêineres, para os Estados Unidos pelo Porto de Santos (SP), de
onde parte a maioria das peças.
dn