O acervo possui para mais de 1 mil itens em exposição que contam um pouco da história da ocupação do Ceará, desde a pré-história, com registros de pinturas rupestres, armas em pedra lascada e polida, fósseis e, em especial, objetos das elites interioranas do período colonial. Além do registro histórico, revelando hábitos, fatos e personalidades do período, cada peça pertencente ao Museu dos Inhamuns, no município de Tauá, é marcada pela paixão e a atenção com a memória de seus cuidadores, o casal Joaquim de Castro Feitosa e Maria Dolores de Andrade Feitosa.
Hoje, presidente da Fundação Bernardo Feitosa, criada após o falecimento do marido, Dolores lembra com orgulho o trabalho de coleção desenvolvido ao longo de décadas pelos dois por mero fascínio e vontade de perpetuação dessa memória. "Éramos originários de famílias tradicionais. Eu, de Sobral; ele, lá dos Inhamuns. Nós já tínhamos uma convivência (com os objetos coletados). Era um assunto usual nas nossas famílias as histórias tradicionais e até os objetos que faziam parte dessa história", lembra Dolores.
A coleção começou a ser montada no início dos anos 1950, pouco depois do casamento de Dolores, inicialmente, com peças ligadas a essa história colonial que suas casas. Depois, com peças que paulatinamente iam adquirindo. "Meu marido era engenheiro agrônomo, viajava muito pelo interior, onde ele achava alguma coisa, ou que quisessem dar ou vender, ele comprava", lembra. O acervo gradualmente foi se avolumando e organizado da melhor forma possível na varanda da casa, em Fortaleza. "Morávamos na rua Monsenhor Bruno e tinha um varanda muito larga. Nós fechamos e ali fizemos um espaço, um abrigo para a coleção. Até uma espécie de cofre com visor para expor as joias nós tínhamos", complementa.
Os escritores Darcy Ribeiro e Eduardo Campos estão entre os ilustres que visitaram a coleção à época, lembra Dolores, dando a dimensão que o ato, a priori amador e caseiro, pouco a pouco tomava. Na década de 1980, a coleção já se amontoava na varanda e guardava peças de grande valor histórico, como um pilão de pedra indígena conseguido na Serra da Ibiapaba e as joias antigas da família. O tempo livre, fruto da aposentadoria dos dois, e a falta de espaço foram o motor para que no fim daquela mesma década se mudassem para Tauá, interessados em dar um novo passo na vida de um colecionador: fundar um museu.
"A gente tinha dúvida de que talvez a sociedade não entendesse o valor. Não compactuasse do valor que nós estávamos dando. Então, fizemos uma exposição em um clube. Foi uma coisa feita amadoristicamente, como quase tudo nosso é. Em dois dias, recebemos 800 visitas", conta. O sonho veio em 1989, com a cessão do prédio da antiga Cadeia Pública de Tauá para abrigar a coleção, que agora compunha o acervo do Museu dos Inhamuns.
Acervo
O museu abriga hoje, além das peças do período colonial, um vasto acervo arqueológico e paleontológico, como ossos de preguiça gigante que habitavam a região alguns milênios atrás. Para Dolores, uma mostra abrangente do que explica o que é o sertão cearense. "Nossos avós, realmente, são os indígenas. Dividimos o acervo cronologicamente. Tem uma sala de paleontologia, uma sala de arqueologia. Temos a coleção do período colonial, a sala de aristocracia rural", ilustra.
Com uma boa vivência na área e conhecedora da maioria dos museus do interior do Estado, Dolores avalia que nenhum outro tem a diversidade e relevância de peças que possuem, "exceto Sobral, que eu não chamo nem interior, viu", completa.
Apesar da relevância do acervo que possui e da sobriedade que têm sua cuidadora em articular ações, a dificuldade financeira é uma constante que assola o Museu dos Inhamuns. Aos 87 anos, 60 deles dedicado à museologia, Dolores tem ainda vigor para reclamar e cobrar atenção para o setor tanto pelo setor público quando privado.
Ela é uma das figuras bastante atuantes do Sistema Estadual de Museus, promovendo cursos de formação, inscrevendo-se em editais e buscando parcerias. O museu funciona hoje como Ponto de Cultura. "Nós temos uma significação muito grande, somos um exemplo muito bom para os museus interioranos. Mas temos uma deficiência grande de recursos humanos, embora fazendo esses cursos, as oficinas... Nós temos dificuldades principalmente da mola do mundo (dinheiro)", lamenta e completa. "É questão de amor, amor verdadeiro pelo museu", conta a gestora.
Comunidades e as casas da memória
Resgatando histórias ignoradas pelos acervos de museus tradicionais, os museus comunitários trabalham a memória sob perspectiva social, pedagógica e ideológica junto a aldeamentos indígenas, a grupos quilombolas, comunidades de pescadores e áreas de conservação ambiental. Os registros dos feitos grandes líderes e representantes das classes dominantes cedem espaço para os de homens comuns, elementos da natureza e do cotidiano dessas comunidades, que se revelam protagonistas dessa reconstrução do passado, elegendo eles próprios o que lembrar e o que esquecer. No Ceará, 20 destas iniciativas já se organizam em torno da Rede Cearense de Museus Comunitários, como uma maneira de fortalecer os projetos e dar visibilidade às suas atividades.
O historiador João Paulo Vieira, coordenador do projeto Historiando (que realiza atividades museológicas, a partir de pesquisas coletivas sobre história e patrimônio de pequenas comunidades) e membro da recém criada rede destaca algumas destas iniciativas no Estado. Para ele, os museus indígenas figuram entre os protagonistas destas novas histórias, utilizando a museologia como recurso para o reconhecimento e afirmação de suas identidades, além de preservação da cultura, sendo os museus instrumentos na luta pela demarcação de terras. "Esses grupos perceberam o poder da memória no sentido de articular e de disputar um espaço dentro das políticas públicas patrimoniais e de memória, e começam a utilizar uma invenção do dominante, do colonizador, que são os museus, para afirmarem suas existências", argumenta.
A ideia é quebrar com a postura tradicional que preserva a versão da história pelo ótica do dominante - preservando, por exemplo, o chamado patrimônio de pedra e cal, como Casa de Câmara e Cadeia, sobrado suntuosos, enquanto destrói vilas operárias e casas de pescadores - e construir coletivamente a memória dessas comunidades. "Esses museus estão tentando atribuir significados e sentidos a esse patrimônio cultural dessas populações, dessas comunidades, que muitas vezes não são reconhecidas pelo poder público, por estarem à margem dos bens que são considerados patrimônio nacionais e estaduais", reforça.
João Paulo cita o exemplo do acervo do Museu do Ceará sobre escravidão, formado na perspectiva tradicional, que traz apenas objetos dos utilizados pelos donos de escravos, principalmente ligados à tortura, como algemas, gargalheiras, o tronco e a mesa em que se assinou a abolição. "Mas o negro enquanto sujeito, os objetos de culto, do cotidiano, não estão presentes nessas exposições", observa.
Sob a proposta de incluir a perspectiva das comunidades, o próprio território que habitam vira objeto do museu. Os bens naturais como rio, árvores, o patrimônio vivo, os saberes, também são "musealizados". No acervo dos museus indígenas, é possível encontrar elementos do cotidiano, como armadilhas tradicionais para caça, objetos para pesca, tarrafas, artesanato, utensílios ritualísticos, mas também fotografias dos processos de articulação comunitária, dos saberes e fazeres tradicionais.
Pedagogia
O museu dos índios Canindé do município de Aratuba (há 128 km de Fortaleza) foi o primeiro go gênero no Estado. Criado em 1994 por iniciativa do Cacique Sotero, foi aberto ao público no ano de 2002, desenvolvendo um trabalho em consonância com a escola indígena diferenciada. "Muitas vezes as escolas indígenas não têm material didático apropriado. Têm dificuldade na execução das suas disciplinas diferenciadas e os museus se tornam um espaço onde eles podem, realmente, a partir da cultura material, a partir do acervo que está ali exposto, pensar e refletir sobre sua própria historicidade", explica João Paulo.
Outras experiências que exploram esse caráter pedagógico são os chamados ecomuseus. João Paulo destaca duas iniciativas, em Maranguape, na comunidade de Cachoeira, e em Fortaleza, com o Ecomuseu do Mangue da Sabiaguaba. "Eles têm uma trilha onde os visitantes andam pelo mangue, conhecendo a vegetação a fauna e também discutindo o mangue como o berçário da vida no mar", ilustra. Em ambos, o foco não é a memória em si, mas o trabalho ecológico e de educação ambiental.
Entre as 20 comunidades que apresentam trabalhos na área e participam da Rede Estadual de Museus Comunitários estão ainda a Colônia Z8 de Pescadores, Associação dos Moradores do Titãzinho, em Fortaleza, os índios do município de Poranga, os Tremembé de Almofala (em Itarema), Tapebas (Caucaia), além de entidades e projetos em diversas comunidades do Estado. "Já tivemos uma primeira reunião. Vamos criar um site para informar tudo o que se passa nesse processo de musealização, dando visibilidade a essas iniciativas", projeta.