A Região Metropolitana de Fortaleza concentra hoje cerca de 18 mil pichadores, distribuídos em 80 grupos organizados. Para estabelecer um ordenamento, a Capital foi demarcada em áreas de domínio, e cada facção tem seu território específico de atuação. Quem possui mais status no meio, entretanto, adquire o direito de inscrever sua assinatura em qualquer área da cidade.
Desta maneira funciona o universo da pichação em Fortaleza, segundo estudo elaborado pela Central Única das Favelas (Cufa) no Ceará. O movimento teve início ainda de maneira esparsa e individualizada, na década de 1980, quando os muros de Fortaleza começaram a ser ocupados por mensagens de cunho político, amoroso e humorístico. A ideia, naquela época, era chamar a atenção mais para a frase do que para o autor. Eram pichações “de moda”, conforme a classificação existente hoje.
Entretanto, em 2014, o movimento está bem mais especializado, apresentando aspectos distintos daquela época. Hoje existe um sistema estruturado, com regras bem definidas e ações planejadas. O objetivo é um só: adquirir fama e status entre o meio social dos pichadores. Trata-se de uma maneira própria de expressão, de manifestar a existência pessoal por meio da afronta ao patrimônio.
Para comprar as tintas, são feitas mobilizações para a arrecadação de dinheiro, como bingos e rifas. Quem tem maior poder aquisitivo - o que não necessariamente representa prestígio - compra os sprays por conta própria. “A pichação é um vício. Tem gente que é pai de família e tira dinheiro do sustento da casa para poder comprar a tinta”, explica o grafiteiro Davi Viana, conhecido como Davi Favela, que até alguns anos atrás era pichador e hoje atua como educador social da Cufa.
Disseminação
Segundo o artista plástico, que ainda mantém entre aquele círculo o respeito conquistado, o vício atinge indivíduos de ambos os sexos, de várias faixas etárias, profissões e classes sociais. “Policiais e advogados são alguns exemplos de pessoas que ainda hoje não largaram o vício. O cara tem um Corolla e anda com o porta-malas cheio de tinta”, diz.
A dependência, de acordo com Davi, é gerada por três fatores. Um deles é a necessidade por adrenalina. Todas as vezes em que o pichador entra em ação, esta substância química é produzida pelo organismo e lançada na corrente sanguínea, por causa do risco assumido ante a prática ilícita, e acaba originando uma necessidade pela sensação instigante.
Outro fator que age como estimulante para continuar na atividade é a vontade de ficar famoso, adquirindo status, respeito e reconhecimento. Existe uma hierarquia entre os grupos de pichadores e, aqueles que conseguem inserir suas marcas em locais mais visados e de difícil acesso, alcançam destaque e sucesso nas “gangues”, termo utilizado por Davi Favela.
O material de que são feitas as tintas é mais um elemento causador da dependência. Substâncias como propano, acetona e xileno, que têm forte cheiro, estão presentes na composição das tinturas em spray, e são mais um item para incitar a prática da pichação.
Pontos visados
Não é qualquer muro recém-pintado que atrai o interesse dos pichadores. Pelo menos, não daqueles que buscam o prestígio entre as “gangues”. De acordo com Davi Favela, existem três tipos de espaços que são visados para as ações. Locais altos têm preferência em relação aos baixos. “Quem escreve na própria altura do muro nem é considerado pichador na hierarquia dos grupos”, ressalta o artista.
Também são mais valorizados os locais considerados permanentes, em que não é possível remover a tinta, como fachadas revestidos em pedra. O terceiro ponto mais buscado envolve os prédios públicos, principalmente aqueles que passaram por tombamento devido ao valor histórico ou artístico.
Em relação ao horário, a grande maioria das pichações ainda é feita durante a madrugada. Entretanto, quando se trata de locais com grande visibilidade, o ato pode ocorrer mesmo em horário de movimento, para garantir o domínio do território. “Eles sabem que, se não fizerem, o outro vai fazer”, diz Davi.
Segundo o artista plástico, 80% dos pichadores estão envolvidos com algum outro tipo de crime, principalmente, pequenos delitos. Como já estão invadindo a propriedade alheia para pichar, daí a cometer outro ato ilícito torna-se bem mais propício. “Quem não tem renda precisa dar um jeito de conseguir o dinheiro para manter o vício e, para isso, às vezes pratica pequenos furtos e uso de drogas”, comenta Davi.
As rixas e conflitos entre os grupos são mais uma face do universo das pichações em Fortaleza. Escrever em local dominado por outra “gangue” pode gerar diversas consequências ao “invasor”. A mais simples retaliação é a rasura ou o “atropelamento” da pichação feita em local inadequado. Em casos mais graves, chegam a ocorrer agressões físicas e, até mesmo, assassinatos. No último fim de semana, um pichador conhecido no bairro José Walter foi alvejado com oito tiros por ter invadido território dominado por outro grupo.
Transformação
De acordo com Davi, a Cufa mantém parcerias com diversos setores sociais, inclusive instituições públicas, como a Secretaria da Justiça do Estado (Sejus), com a tentativa de promover a mudança de mentalidade dos pichadores capturados em ação. Na Vara de Execuções de Penas Alternativas, por exemplo, os acusados têm a oportunidade de aprender a arte do grafite, como medida socioeducativa pelos atos infracionais cometidos.
Uma parte dos envolvidos nos trabalhos, segundo Davi, passa a ser profissional do ramo, não voltando a praticar a pichação. “O grafite pode transformar. Todos os anos são cerca de 50 homens e mulheres que passam pelo curso e mudam de comportamento, canalizando a adrenalina para a arte”, observa, acrescentando que 80% dos grafiteiros de hoje já foram pichadores no passado.
A respeito da repressão à prática delituosa, a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Estado (SSPDS) disse, em nota, que a Polícia Militar faz diversas ações para coibir a atividade. Os policiais que realizam as rondas, principalmente durante a noite, são orientados a observar e reprimir qualquer atitude suspeita de pichadores.
Bruno Mota
Repórter