Foi sob um cajueiro plantado num terreno sagrado e sinônimo de resistência para o povo Anacé, em Caucaia, que a mágica aconteceu. Índios e um homem nascido no país que perseguiu e matou muito da população quilombola no início do Brasil encontraram-se, trocaram gentilezas e prometeram união. Vindo de Portugal para a XII Bienal do Livro do Ceará, o escritor luso-brasileiro nascido em Angola, na África, Valter Hugo Mãe deixou a localidade da Japuara nesta segunda-feira (17/4) modificado.
"O que me disseram aqui vai reverberar na minha cabeça por anos. Eu acho que sou muito pouco, muito pequeno para a grandeza do vosso povo. Porque a vossa questão deveria ser uma responsabilidade de toda a gente. E porque vocês são de verdade os anfitriões do Brasil. Então, muito embora o meu povo tenha vindo aqui para confundir, é muito simbólico eu hoje poder estar aqui e vocês poderem estar aqui sem terem sua cultura eliminada", disse Valter.
A questão a qual ele refere-se é a luta pela demarcação das terras indígenas. Os Anacés de Caucaia reivindicam isso há pelo menos 12 anos. São mais de 200 famílias, o que representa mais de 2.200 pessoas, distribuídas em 8.700 hectares do território caucaiense e atendidas principalmente por serviços públicos municipais. "Vocês acabam por ser o reduto de uma sabedoria que nos precede. E desperdiçar uma sabedoria seria uma tolice. Porque quando se trata de identidade a gente não pode deixar de ser o que é. Por isso, a gente não pode abdicar dos índios. Eu levo daqui a solidariedade e a vontade de protestar. O espaço de cada um precisa ser respeitado. Para a nossa dignidade ser respeitada, a gente precisa respeitar a dignidade dos outros. Que a gente se mantenha, sobretudo, solidários à luta dessas pessoas porque são elas que verdadeiramente nos merecem", acrescentou Valter.
Pela primeira vez no Ceará, o escritor se disse impressionado com as manifestações culturais indígenas às quais assistiu e participou na visita que fez a Japuara, e com o alto grau de engajamento dos índios na defesa das terras. "Eles nos receberam como amigos. E a mensagem é justamente essa: a de que eles estão tentando resolver as coisas com a amizade; pela ideia de responsabilidade mútua para que ninguém mais morra. Uma coisa que ouvi de mais estranha e aflitiva foi a de que eventualmente a bala que mata o índio vem de um gabinete. E essa ideia de que um índio é morto por um gabinete é muito triste. O mundo precisa de ser verdadeiramente outra coisa", prosseguiu o português.
Valter comprometeu-se em ser porta-voz da luta dos índios brasileiros por mais dignidade, reconhecimento e garantia de direitos. "Em todos os meu livros, está sempre em causa uma certa solidão. E todas as minhas personagens tendem a ser de espaços pequenos. Podendo ser vistas como universais, importando a completude da humanidade, elas começam a ser vistas de certa forma como confinadas. E eu vejo muito disso na causa dos índios. Eles estão confinados, como numa claustrofobia. Como se até os bichos tiverem que saber onde acaba o índio e onde começa o lugar do posseiro, que tem só uma mansão onde passará alguns dias. O que me sensibiliza na causa do índio é ele ser meio que espoliado da vida. É importante não prostituir o lugar do índio. É importante não vender o que é sagrado", considerou o autor.
Cacique-geral da comunidade Anacé, Antonio Ferreira da Silva, 68, enalteceu a importância da visita de Valter Hugo Mãe à comunidade para a causa indígena. Ele já foi preso duas vezes na luta pela demarcação das terras. "O povo dele nos esmagou, mas nós não vamos dar a mesma coisa. Recebemos bem para ele ter mais força pra levar a nossa história adiante. Nós não somos invasores. Estamos apenas resgatando o que é nosso. Porque a gente entende que a terra é uma coisa bendita que Deus deu. E, por isso, não se compra. A terra do brasileiro toda vida foi indígena.
SOBRE O AUTOR
Valter Hugo Mãe nasceu em Angola, na África. Tem 46 anos, 44 dos quais vividos em Portugal, onde atualmente mora com a mãe. Tornou-se um dos escritores mais importantes da literatura contemporânea por ter criado, dentre outras obras, "A máquina de fazer espanhóis", "O filho de mil homens" e "A desumanização". Seu romance mais recente tem o título de "Homens imprudentemente poéticos". Reconhecido em todo o mundo, recebeu elogios até do Nobel de Literatura e também português José Saramago. Apesar das naturalidades portuguesa e angolana, revelou na Bienal do Livro do Ceará (13 a 24 de abril, no Centro de Convenções, em Fortaleza) que gosta de ser chamado de luso-brasileiro por identificar-se muito mais com a nossa cultura do que com a de Angola.
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