Por Renato Santana, da Assessoria de Comunicação - Cimi
Acolá se vê uma lagoa sendo aterrada, blocos de concreto empilhados e uma área desmatada - totalmente descabelada; não há vida, gente. É árido mesmo. Deste lado o que se vê é o inverso: a mata avolumada e desgarrada, casas com quintais brotando em milho, feijão e macaxeira. Gente indo e vindo, crianças correndo ou caçando grilos para presentear. Acolá é terra de branco. Deste lado é a retomada Caminho do Trilho, Terra Indígena Tapeba, município de Caucaia (CE).
O Caminho do Trilho é um símbolo. Localizada na Gleba Palmirinho, que ao lado da Gleba Tapeba compõe a terra indígena, as famílias que ali vivem recuperaram o chão tradicional de forma resiliente. Decidiram não mais viver entre a linha de trem da Transnordestina, a pouco desativada, e as cercas dos posseiros. Ao longo dos anos, retomaram cinco áreas. A última, 400 hectares de mata usados para a reprodução física e cultural. Não era o que planejava para o local a STG Construções Imobiliárias.
Com licenças ambientais do Governo do Ceará e da Prefeitura de Caucaia, a empresa queria - e quer - construir no lugar. Os Tapeba não aceitaram. Hoje 67 famílias vivem nessa parte da comunidade Caminho do Trilho e na segunda-feira, 13, comunicaram à Fundação Nacional do Índio (Funai) que seguirão resilientes mesmo com o fim do prazo concedido pelo Tribunal Regional Federal (TRF) da 5ª Região para a saída das famílias, parte de uma decisão de reintegração de posse favorável à STG Construções.
Desde então o despejo forçado poderá ocorrer a qualquer momento. A decisão do TRF-5 autoriza o uso de tropas da Polícia Militar para a retirada forçada dos Tapeba. "A Funai irá recorrer da decisão ao STF (Supremo Tribunal Federal) e a 6ª Câmara da PGR (Procuradoria-Geral da República) vai emitir um relatório mostrando que se trata de ocupação tradicional. Estamos otimistas, mas atentos e enquanto povo decididos a permanecer e lutar pela nossa terra", crava Ricardo Weibe Tapeba.
Weibe é uma jovem liderança, advogado e nas últimas eleições tornou-se vereador de Caucaia - mais para frente você saberá o que isso significa, de fato. Ao lado do cacique Alberto Tapeba e de seu pai, a histórica liderança Dourado Tapeba, referência para o movimento indígena do Ceará, Weibe fala em nome de um povo que luta há pelo menos 32 anos pela demarcação do território tradicional. Os demais povos do Ceará enxergam na luta Tapeba algo de emblemático. A história explica a razão.
36 mil hectares foram colocados em 5 mil
O povo Tapeba deu origem ao município de Caucaia. Como era habitual por parte da Coroa Portuguesa, os Tapeba receberam uma Sesmaria que hoje bate na casa dos 36 mil hectares. Acontece que tal como hoje em dia, regras e leis nunca foram respeitadas por seus próprios criadores. Os indígenas então passaram a sofrer massacres e afugentados se instalaram em áreas afastadas do início desordenado e violento de Caucaia. Todavia, a cidade os perseguiu; implacável.
Num salto histórico de séculos, a parte contemporânea dessa história tem como marco a década de 1970. Mesmo com a ditadura militar, os Tapeba reivindicavam o território tradicional. Em 1985, a Funai quis oferecer uma Colônia Agrícola aos Tapeba - conforme previa o Estatuto do Índio. "A gente não quis porque podia viver índio e branco nessa conformação. Então veio a partir dali uma outra visão: o nosso território era de ocupação tradicional", explica Weibe Tapeba.
Assim a Funai procedeu e o processo de demarcação se arrastou até… 1997. Ou seja, apenas 12 anos depois o Ministério da Justiça publicou a Portaria Declaratória. A ressaca da festa ainda podia ser sentida, 48 horas depois do Diário Oficial da União ter ido às ruas, quando o Superior Tribunal de Justiça (STJ) anulou todo o procedimento demarcatório atendendo à Prefeitura de Caucaia. A municipalidade alegou que não participou do Grupo de Trabalho da Funai.
Em 2002, um novo procedimento demarcatório foi iniciado para ter a Portaria Declaratória publicada em 2006. Novo procedimento, novo banho de água fria: mais uma vez o STJ anulou todo o trabalho. A Prefeitura de Caucaia reafirmou que não foi chamada ao Grupo de Trabalho da Funai, o que contrariava a decisão do STJ de 1997. "Tudo foi mais uma vez reiniciado em 2010. Dessa vez com o município no Grupo de Trabalho. Em 27 de agosto de 2013 o Relatório Circunstanciado saiu", diz Weibe.
Por trás das ações da Prefeitura de Caucaia no STJ estava a poderosa família Arruda. Em 1997, estava o prefeito José Geraldo Arruda; 2006, a esposa Inês Arruda. O problema é que em 2013 os Arruda não estavam na Prefeitura, então ingressaram com ação por conta própria na 3ª Vara Cível de Fortaleza. Sem sucesso, foram bater no TRF-5. Bingo: conseguiram a anulação do processo. No Ministério da Justiça estava José Eduardo Cardozo, que tinha uma ideia para os povos indígenas.
Mesa de diálogo, acordo descumprido
Mesmo solapado do Palácio do Planalto num golpe com forte participação de inimigos declarados dos povos indígenas, o governo Dilma Rousseff tentava cativá-los. Visando atendê-los, o ministro Cardozo propôs aos povos indígenas com conflitos de terras mesas de diálogos envolvendo seus antagônicos, a Funai e o Ministério Público federal (MPF). A ideia era picotar as terras indígenas, apagando das demarcações áreas de interesses privados diversos e que surgissem colocando em risco a "governabilidade".
"Decidimos pela mesa de diálogo e assinamos um acordo em 19 de fevereiro de 2016", afirma Weibe Tapeba. A Prefeitura de Caucaia e o Governo do Ceará retiraram as reclamações interpostas no período do contraditório - 90 dias em que qualquer pessoa ou ente pode questionar o Relatório Circunstanciado da Funai. Com a família Arruda, os Tapeba acordaram de abrir mão de parte da Fazenda Soledade, enquanto eles abriram mão de duas outras áreas da demarcação. Os Tapeba desistiram de hectares perto do centro de Caucaia e terras usadas pelo Programa Minha Casa, Minha Vida.
Todos os impedimentos judiciais para a publicação da Portaria Declaratória deixaram de existir. A Funai emitiu parecer para as mais de 50 contestações, derrubando-as. Weibe explica que dos 5.800 hectares da demarcação, com o acordo caiu para pouco mais de 5.200. "Acontece que o governo não cumpriu. Com o procedimento liberado pela Funai, o Ministério da Justiça pactuou 30 dias para a publicação. O prazo se encerrou em novembro de 2016", denuncia o Tapeba.
O resultado veio numa enxurrada de novos processos judiciais contra a demarcação e liberação para as plantas da STG Construções Imobiliárias no Caminho do Trilho. "Foram muitos equívocos acumulados, nossa terra de 36 mil hectares caiu pra 5 mil, décadas de anulação de procedimentos. Agora esse acordo não cumprido. Não resta alternativa ao povo Tapeba a não se retomar o que é seu. Vamos lutar com todos os recursos legais disponíveis", enfatiza Weibe Tapeba.
Articulando o movimento indígena
Cláudio Cajá Tapeba é uma das lideranças da retomada do Caminho do Trilho. Historicamente sempre foi ativo no movimento indígena do Nordeste, sobretudo na Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste (Apoinme). Entende o poder da articulação. "Não temos casa para morar a não ser a terra que é nossa, onde a gente colhe o alimento e cria os filhos. Por isso essa luta não é só Tapeba, mas de todos os povos indígenas, quilombolas e sem-terras", ressalta.
Na terça-feira, 14, o poder de tal articulação reuniu ao menos uma dezena de organizações aliadas dos Tapeba e povos do Ceará, caso dos Pitaguary, Anacé e Jenipapo-Kanindé. No estado são 24 terras indígenas reivindicadas, sendo que apenas a Tremembé do Córrego João Pereira, do povo Tremembé, entre os municípios de Acaraú e Itarema, está homologada e uma Reserva foi criada para o povo Anacé, em Caucaia (Anaí, 2017) devido aos impactos definitivos do Complexo do Pecém.
"Estamos na força dos nossos encantados para e dizer que somos todos Tapeba nessa luta", frisou o cacique Cauã Pitaguary. Já Climério Anacé destacou a emblemática luta dos Tapeba e disse que seu povo "está espiritualmente e fisicamente com os Tapeba nesse enfrentamento que fortalece os indígenas como um todo". Território e criminalização podem ser consideradas pautas unânimes entre os povos do Ceará, ainda mais com a defasagem demarcatória apresentada pelos dados.
Weibe Tapeba enfrenta uma outra face da caminhada indígena. A reintegração de posse contra a retomada do Caminho do Trilho o teve como réu. "A criminalização também não é algo novo. Já sofremos processos por dano ao patrimônio e até formação de quadrilha". Apesar de tudo, o indígena ressalta: "Temos aqui 13 escolas e um Subsistema de Saúde Indígena que apesar dos problemas funciona para os 7.400 Tapeba que vivem aqui na terra. Avançamos. Não vamos parar".
Diante de um contexto de forte investida da oligarquia regional contra os Tapeba e o completo desrespeito do governo federal ao direito territorial, Weibe ter se tornado vereador é o sinal que muita coisa mudou em Caucaia numa marcha irreversível. Essa marcha, cada vez mais, leva o povo a seguir resiliente levantando casas, plantando comida, criando os filhos e botando a história adiante.
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