Desde quando eu era novinha, quando eu ia me consultar com ele, com
minha mãe, eu tinha 14 anos, eu entrava no consultório, ele sempre
trancava a porta e mandava a gente tirar a roupa, pegava no seio, ficava
pegando no corpo da gente”.
Essa é a descrição de uma consulta de rotina realizada pelo médico
ginecologista e clínico geral José Hilson de Paiva, 70 anos, atual
prefeito de Uruburetama, a 110 quilômetros de Fortaleza. A vítima, que
vai ter a identidade preservada, é apenas uma na lista que pode chegar a
dezenas de mulheres. E o ato abusivo é apenas um na sequência de
tratamentos criminosos aos quais o homem submeteu pacientes ao longo de,
pelo menos, 30 anos. O médico continua atendendo no consultório
particular de Uruburetama. No site do Conselho Federal de Medicina
(CFM), o registro profissional aparece com “situação regular”.
Os crimes foram gravados pelo próprio médico. O Sistema Verdes Mares
teve acesso a 63 vídeos, feitos entre 2009 e 2012 com, pelo menos, 23
mulheres, além de dezenas de fotos de partes íntimas de pacientes
tiradas pelo ginecologista durante exames em Uruburetama e Cruz. Dessas,
pelo menos 17 foram claramente abusadas. A reportagem ouviu seis
vítimas nas duas cidades e teve acesso a relatos de Boletins de
Ocorrência.
Em 46 gravações, José Hilson realiza atendimentos invasivos e com
clara conotação sexual. Um dos vídeos mostra, inclusive, imagens em VHS,
o que deixa claro o quanto a prática era antiga. Em muitos casos, os
abusos aconteciam sem que a paciente sequer percebesse a violência.
Em Uruburetama, o prefeito filmou mulheres no consultório particular
dele, anexo à casa onde mora. Também gravou pacientes em atendimentos
nos quartos da própria residência. Já em Cruz, onde trabalhou como
clínico e cirurgião geral, entre 2007 e 2013, filmou os abusos no Centro
de Saúde do município. Como procedimento padrão, José Hilson costuma
pedir às pacientes para ficarem nuas.
“Quando entrei, mandou tirar a roupa, fiquei nua”, relata outra
vítima. “Eu falava que tinha vergonha e ele dizia ‘que besteira, eu sou
médico”, conta outra mulher abusada. Nos vídeos, ele falava frases como
“tire tudo por causa da sudorese, deixe de frescura”.
Secreções e aplicações
O médico sempre posicionava a câmera de forma a deixar o contato
nítido. Às vezes, tirava foto das mamas, glúteos e vagina das mulheres.
Às pacientes, explicava que era para identificar “hormônio” e prevenir
câncer. E dizia que, colocando as fotos no computador, teria como
descobrir doenças.
Ele também chegava a botar a boca e sugar o seio das pacientes,
afirmando estar procurando por “secreções”. E ia além. “O primeiro
procedimento que eu achei estranho foi ele usar um canudo e chupar nos
meus peitos”, relata uma das vítimas.
Nos vídeos, José Hilson explica, ainda, que as pacientes têm “muita
irritação” ou “muita inflamação” ou que o “útero ‘tá’ todo virado”. Como
tratamento, passa de 10 a 15 sessões de aplicação de gel na vagina ou
no ânus. “Doutor, e meu esposo? Você orienta ele?”, uma das vítimas
pediu. “Não, bebê, tem que ser você”, respondeu ele.
Durante o tratamento, José Hilson coloca os dedos com gel na vagina
das pacientes e faz movimentos sensuais. O procedimento se repete em
mais de 40 vídeos. Em muitos deles, ele acaricia e aperta os seios como
parte do exame. “Tem que sentir a sensibilidade. Qual tu sente mais, o
direito ou o esquerdo?” pergunta.
Nas dezenas de gravações, também diz às mulheres, claramente
incomodadas, para mexer o quadril. “Faça forcinha”, pede. Ao que a
paciente reage, “pra quê isso?”. Ele responde: “isso tá muito inflamado,
mulher”. Em outro vídeo explica: “faça você mesmo, sacudindo como se
fosse ter relação”, ordena.
A manobra favorita do médico era virar as pacientes de costas,
enquanto elas permaneciam deitadas, apoiadas na maca. Os vídeos mostram
ele abrindo a braguilha e esfregando o órgão genital, enquanto finge
estar colocando o dedo ou aparelho médico. Constrangida, uma paciente
tenta olhar pra trás para entender o que está acontecendo. Ele intervém,
“pode ficar bem retinha, senão atrapalha”.
Além da “aplicação” vaginal, em muitas consultas, ele pedia à
paciente para fazer sexo oral nele, método que o profissional chama, nos
vídeos, de “aplicação oral”. Uma das mulheres conta que procurou José
Hilson, há sete anos, em Uruburetama, porque estava tentando engravidar.
Nunca tinha ido ao ginecologista antes.
“Ele disse assim: ‘a gente vai fazer um tratamento’ e pediu pra ‘mim’
fazer sexo oral com ele. Perguntei a ele por quê, né? Ele disse que era
o procedimento, que era o que o médico fazia, ele tinha que ver a minha
sensibilidade. Ia ser o mesmo procedimento se eu fosse atrás de
qualquer outro médico”, conta a vítima. A mulher se recusou a fazer a
“aplicação oral”. Com receio de que outro ginecologista fosse pedir o
mesmo, não buscou mais tratamento.
Tentativa de estupro
Uma das pacientes entrevistadas em Cruz conta que surpreendeu o
médico durante tentativa de estupro. Ela foi procurá-lo porque estava
com sangramento e ele receitou o suposto creme. “Eu não duvidei porque,
pra mim, ele era profissional”.
Na segunda sessão, ela lembra que percebeu o médico nervoso.
revela a paciente. Ela se abala ao falar do momento de horror. “Eu surtei, saí de lá correndo”.
Silêncio e represálias
A maioria das mulheres optou por não denunciar o médico. “Cidade
pequena, o médico é exaltado. As mulheres não têm coragem porque são
pessoas humildes, que não têm vez, nem voz”, explica uma das vítimas. A
maior parte delas, donas de casa, agricultoras e operárias. “Eu queria
gritar, dizer pra todo mundo. Mas era a minha voz no meio de muitas.
Como seriam as provas que eu teria? Minha palavra contra um médico bem
reconhecido?”
A família de José Hilson de Paiva sempre teve influência política. A
esposa dele, Maria das Graças Cordeiro de Paiva, foi prefeita de
Uruburetama por dois mandatos consecutivos, eleita em 1996 e 2000.
Chegou a ser condenada em segunda instância por improbidade
administrativa, mas nunca foi presa.
Além de ginecologista conceituado, apelidado de “Mão Santa”, Hilson
de Paiva foi prefeito de Uruburetama em 1989, vice-prefeito em 2012 e
eleito para o atual mandato com 76% dos votos. As tentativas de
denúncias contra o médico não são novas. Em 1994, o Diário do Nordeste
publicou notícia sobre donas de casa de Uruburetama que afirmaram ter
sofrido assédio sexual. O caso gerou inquérito policial e foi parar na
Justiça. Mas o processo foi arquivado por falta de provas.
De vítima a réu
No ano passado, vieram à tona vídeos do médico mantendo relações
sexuais com uma paciente em uma unidade de saúde de Uruburetama. Mas,
como pareciam consentidas, a polêmica não resultou em sanção. A própria
primeira-dama, procurada à época, defendeu o marido. “Eu quero saber
qual é o homem que não trai sua esposa”, disse.
Após o escândalo, no ano passado, outras cinco mulheres fizeram novos
Boletins de Ocorrência de estupro contra José Hilson. Elas foram à
Delegacia de Itapipoca, município vizinho, por medo de represálias. Três
casos não geraram processo porque eram muito antigos e prescreveram,
dois traziam abusos que aconteceram em 1986 e um em 1994.
Em um dos casos não foi feita representação e apenas um dos boletins –
relacionado a um abuso de 2015 – gerou inquérito e chegou à Justiça. O
processo foi devolvido em março deste ano com a solicitação de novas
diligências. Também foi transferido para a delegacia de Uruburetama, que
ainda não concluiu as investigações.
Enquanto isso, o prefeito entrou na Justiça contra quatro vítimas.
“Fui no fórum e fiz a denúncia. Fui na televisão”, diz uma das mulheres
processadas. “O prefeito colocou contra as vítimas um processo de
calúnia e difamação. Aí, pra poder ser arquivado, as vítimas tinham que
pedir desculpa pra ele. Quando chegou na minha hora eu disse: ‘eu não
vou pedir desculpa. Você é quem deve me pedir desculpa’. Aí o juiz
falou: ‘você tem dinheiro pra pagar advogado?’. E eu disse: ‘tenho não’.
‘Pois agora você é ré”, relata.
O juiz José Cleber Moura do Nascimento, responsável pelo processo, foi procurado e não quis conceder entrevista.
Em atuação
O último caso de abuso que a reportagem apurou é de dezembro do ano
passado. A vítima relata que procurou o médico por causa de dores na
coluna. Durante o exame, José Hilson ofereceu também uma consulta
ginecológica.
“Mas, doutor, eu vim falar da minha coluna”, explicou a vítima. Por
insistência, ela concordou com a consulta. Ele a virou de costas para
fazer exame de toque e repetiu o procedimento abusivo de costume. Ao
sair do consultório, ela contou apenas para o marido o que tinha vivido.
“Não tenho como conversar com minha família sobre isso. Tenho medo do
pessoal não acreditar”.
Monstro
Em entrevista ao Fantástico, que denunciou o caso neste domingo (14),
o secretário-geral da Associação Médica Brasileira, Antônio Jorge
Salomão, que assistiu aos vídeos gravados por José Hilson de Paiva,
afirmou que em “nenhum momento da humanidade existe esse procedimento,
isso é asqueroso”, referindo-se às práticas realizadas pelo prefeito de
Uruburetama. O secretário chama as cenas de indescritíveis. “Não se
trata de um médico, trata-se de um monstro”.
O vice-presidente da Associação Médica Brasileira, Diogo Leite
Sampaio, também reforça a opinião. “Ele está se aproveitando da
paciente. Ele não está examinando, procurando nenhum problema. Isso é
crime”, afirma.
garante Diogo Leite.
Defesa
Na última quinta-feira (11), o prefeito José Hilson de Paiva foi
procurado por equipes do Sistema Verdes Mares para se pronunciar sobre
os novos vídeos. Ao sair da Prefeitura, o médico foi abordado e afirmou
que tudo não passa de “jogada da oposição querendo me derrubar”.
Ele confirmou que mantinha relações sexuais com pacientes, mas “no
consultório, não” e afirmou: “nunca fiz nada forçado”. Além disso,
explicou que só aconteceram com “umas três pessoas”. Questionado sobre o
grande número de vídeos e relatos de abusos gravados, disse que só
falaria após conversar com o advogado. “Eu vou me defender na frente de
vocês, vou dizer o que foi que houve, o que ‘tá’ acontecendo”.
Procurado, o advogado do médico, Kaio Castro, enviou nota explicando
que a defesa só vai se manifestar sobre o caso quando tiver “acesso às
mídias”.
Segredo de Justiça
O Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE) confirma que está
investigando o caso e teve acesso aos novos vídeos dos abusos sexuais,
mas não vai se pronunciar porque o processo segue em segredo de
Justiça.
O Conselho Regional de Medicina do Ceará (Cremec) também foi
procurado pela reportagem e, em nota, afirmou que não vai “comentar
processos envolvendo profissionais porque tramitam em sigilo, por força
da ética”. (Com a colaboração do repórter Alessandro Torres)
diario do nordeste