A União Europeia prevê crescimento de 6% para Portugal neste ano, mas
Vitorino Tomaz, 63 anos, diz que "tempos sombrios" estão por vir. Para
ele, o país está combinando uma série de problemas — o mais latente
deles, a inflação em disparada — que tornarão a vida dos portugueses
mais difícil nos próximos anos. "É só ir para as ruas para vermos o que
está acontecendo", frisa ele. "Aumento descontrolado dos preços,
dificuldade econômica e serviços públicos entrando em colapso", lista.
O sinal mais evidente de que Portugal está descarrilando, ressalta o
garçom, que nasceu no Alentejo, mas vive há décadas em Almada, na margem
sul de Lisboa, vem do Produto Interno Bruto (PIB), a principal medida
da atividade econômica. Depois de avançar 2,5% nos primeiros três meses
do ano, o indicador apresentou retração de 0,2% entre abril e junho.
Pelos cálculos da Eurostat, o órgão de estatísticas da União Europeia,
além de Portugal, somente dois outros países registraram contração no
mesmo período: Lituânia (-0,4%) e Latvia (-1,4%).
A perspectiva é de que a segunda metade do ano seja ainda mais dura,
independentemente do elevado fluxo de turistas que está movimentando a
economia neste verão de mais de 40 graus. Economistas
não descartam uma recessão. Portugal continuará lidando com a praga bem
conhecida dos brasileiros, a inflação, que, nos 12 meses terminados em
julho, cravou alta de 9,1%, a maior em quase 30 anos. O custo de
vida nesse patamar solapa a renda dos portugueses, que convivem com um
dos menores salários da Zona do Euro. Não por acaso, o país tem perdido
mão de obra jovem, que, com o diploma universitário nas mãos, não pensam
duas vezes em buscar emprego em países vizinhos.
Vitorino viu isso em casa. O filho mais novo, Diogo,
formou-se em biologia molecular e optou por trabalhar na Áustria. "Foi
ganhar quase três vezes mais do que receberia se ficasse em Portugal",
conta. O problema é que essa fuga de cérebros e de mão de obra
qualificada não atinge apenas as empresas privadas, que vêm recrutando
empregados no exterior, oferecendo vantagens antes inimagináveis para o
mercado português. Bate ainda mais forte no setor público, amarrado pela
burocracia, que não consegue repor e ampliar o quadro de pessoal.
Um número significativo de servidores vem se
aposentando e os que ainda não têm tempo de serviço para encerrar a
carreira migram para a iniciativa privada, atrás de salários melhores.
Economistas ressaltam que o elevado nível de aposentadorias no setor
público e a dificuldade de reposição de vagas mostram que Portugal não
se preparou para o futuro. Esses novos aposentados entraram em órgãos
públicos logo depois da Revolução dos Cravos, em 1974, que derrubou o
regime ditatorial de Salazar. Aqueles que poderiam substitui-los
preferiram tentar a sorte no exterior, reconhece Sandra Utsumi, diretora
executiva do Banco Haitong.
Morte de bebês
O resultado disso está nas ruas, na saúde, nos serviços
de imigração, na Previdência Social, na segurança, nas escolas. "A
qualidade dos serviços públicos caiu muito, e tende a piorar", admite
Carlos Melo, 36 anos, agente de seguros. A situação mais dramática está
nos hospitais, que sofrem com a falta de médicos e de enfermeiros. Nas
últimas semanas, vários serviços foram suspensos, em especial os de
obstetrícia e os de ginecologia, voltados para grávidas. Em menos de uma
semana, dois bebês morreram por falta de atendimento adequado na hora
do parto. Os problemas, reconhece a secretária de Estado de Saúde, Maria
de Fátima Fonseca, estão longe da solução, mesmo com a promessa do
governo de elevar o valor das horas extras de médicos. "Na minha idade,
posso dizer que não verei melhoras", afirma Adélia Ferraz, 81 anos.
Com policiais de menos para o patrulhamento, a sensação de insegurança
vem aumentando nas ruas. O argumento do governo de que Portugal é o
sexto país mais seguro do planeta não cola mais em parte da população,
que vem sendo insuflada pelo Chega, o partido de extrema direita, dono
da terceira bancada do parlamento. Para tentar amenizar a situação,
prefeituras como as de Lisboa e do Porto optaram por fechar delegacias
em determinados horários e deslocar policiais da burocracia para as ruas
— há uma semana, o brasileiro Jefferson Terra Pinto, 33 anos, foi
espancado até a morte na porta de uma casa de show da capital lusitana.
No que depender dos policiais, a situação continuará
tensa. Representantes da categoria têm feito manifestações públicas
defendendo uma greve geral. O governo promete reforçar os quadros das
polícias, por meio de concursos, e aumentar os salários. Mas poucos
acreditam nas promessas. Entre os professores, o descontentamento não é
menor. A ameaça, inclusive, é de paralisação assim que as aulas
retornarem depois das férias de verão. "São problemas estruturais o que
vemos no setor público", reconhece o economista Franquelim Alves,
professor convidado da Universidade Católica de Portugal.
As grandes cidades também sofrem com as deficiências na
coleta de lixo. Dejetos se acumulam, sobretudo nas áreas mais
turísticas. Comerciantes reclamam da sujeira e da falta de segurança
nessas localidades. As receitas com os visitantes que vêm de fora são
vitais para a economia do país. O problema é que eles acabam sancionando
a disparada dos preços, que será combatida com juros mais altos, como
avisou o Banco Central Europeu (BCE), que elevou o custo básico do
dinheiro em 0,5 ponto percentual, a primeira alta desde 2011.
O presidente da República, Marcelo Rebelo de Souza, tem pedido paciência
e resiliência à população, que ainda vê parte do país ardendo em chamas
por causa de incêndios que poderiam, em boa parte, ser evitados. Mas
está difícil atender a esse apelo, reconhece a aposentada Adélia Ferraz.
O agente de seguros Carlos Lopes verbaliza bem esse descontentamento:
"Estamos pagando pelos erros de consecutivos governos". A brasileira
Maria da Penha, 56 anos, diz que, nas duas décadas em que vive em
Portugal, nunca viu um quadro tão complicado, a começar pela inflação.
"Tudo está muito, mas muito caro", complementa ela, que trabalha como
diarista.
Pobreza e dívida
O ano de 2023 já é visto como terrível pela maioria dos
portugueses. "Os efeitos da guerra da Ucrânia, que empurrou os preços
da energia (incluindo os combustíveis) para cima, só estão no começo",
prevê o agente de seguros. O economista Franquelim Alves não está tão
pessimista. "Não estamos vivendo o caos", frisa. Mas reconhece que
Portugal tem problemas estruturais de longa data, a começar pelo pesado
endividamento público. Em duas décadas, a dívida pública portuguesa
saltou de 60% para quase 130% do PIB.
No entender dele, os governos que se sucederam optaram
por financiar o crescimento da economia com base no endividamento e no
aumento de impostos, contudo, esse movimento não é sustentado. Alves diz
que, depois da crise financeira de 2008 e 2009, quando a Troika
(formada pela Comissão Europeia, pelo BCE e pelo Fundo Monetário
Internacional, FMI) impôs uma série de restrições orçamentárias a
Portugal, a dívida pública até caiu. Porém, voltou a crescer por causa
da pandemia do novo coronavírus, uma vez que o governo foi obrigado a
lançar mão de medidas para socorrer a população, principalmente a mais
carente.
A pobreza, por sinal, vem aumentando substancialmente
em Portugal. "Só não estou numa situação mais complicada porque faço
parte de um programa social do governo, que subsidia as tarifas de
energia — com alta acumulada de 31% em 12 meses", diz a diarista Maria
da Penha. Ela conta ainda que tem ouvido relatos preocupantes de
conhecidos que já não conseguem comprar coisas básicas para a
alimentação. Nem mesmo a queda do desemprego, que está em 5,9%, ajudou a
reverter a situação complicada das famílias. A razão: a renda não
consegue acompanhar as remarcações nas gôndolas dos supermercados.
O presidente do Banco PBI, João Pedro Oliveira e Costa, admite que o
elevado custo de vida é hoje, "claramente", o tema mais preocupante
neste momento em Portugal, e não descarta o aumento do calote no crédito
se a carestia se mantiver nos níveis atuais. "Ninguém consegue mais
fechar as contas do mês. Os salários não fazem mais frente aos aumentos
de preços", reforça o garçom Vitorino Tomaz. Dados oficiais apontam que o
Banco Alimentar, de assistência aos mais pobres, está socorrendo 52 mil
pessoas a mais do que antes da pandemia.
Desprevenidos
Os graves problemas enfrentados por Portugal não devem
passar despercebidos pelos brasileiros que desejam aportar no país
crentes de que o Eldorado existe. Os que já vivem em território luso têm
a exata noção do que é viver fora do Brasil e num local em que a renda
média já não paga um aluguel básico. O salário mínimo está em 705 euros
(cerca de R$ 4 mil) e o arrendamento de um apartamento de um quarto,
dependendo da área de Lisboa, encosta dos 900 euros (R$ 5,1 mil). Quem
não pode arcar sozinho com o aluguel, se submete a dividir a casa com
até seis pessoas — em alguns casos, há revezamento de camas.
A Casa do Brasil, com sede em Lisboa, tem feito um trabalho no sentido
de desmistificar a visão de que Portugal é uma terra de oportunidade,
especialmente diante de notícias propagadas de que sobram empregos no
país. Vagas realmente há, mas o que é pago pelo trabalho prestado,
muitas vezes, não banca nem as despesas necessárias com moradia e
alimentação. Diz a diarista Maria da Penha: "Em casa, não há problemas
porque eu, meu marido e meu dois filhos mais novos trabalhamos.
Dividimos todas as despesas. Sem isso, os problemas seriam grandes".
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