Nós tínhamos na nossa ala uma sala especial, dedicada, que era uma coisa muito boa para lidar com um paciente e talvez, em um cenário pouco provável, até dois ao mesmo tempo", relata o médico italiano Angelo Pan, chefe da divisão de infectologia do Hospital de Cremona, na Lombardia. "Na primeira noite da doença, tivemos 14 pacientes admitidos, então tivemos que abrir uma nova unidade (...) nos dias seguintes, foram chegando, 30, 50, 60 pacientes".
A fala ilustra a chegada do novo coronavírus no norte da Itália, primeira região do país atingida pela doença. Tomada subitamente, Cremona foi obrigada a se adaptar rápido. "Nossa unidade tinha 12 leitos, e tivemos que transformar em 44 na manhã seguinte. Nos dias depois, fomos abrindo uma ala a cada dia", disse, em
conversa com o médico cearense Fábio Távora, membro da Sociedade Brasileira de Patologia e diretor do Laboratório Argos. Ao todo, o hospital passou de dez leitos de Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) para 48 em questão de dias.
A médica piauiense Emanuelle Valente, pesquisadora em um hospital de Trieste, no nordeste italiano, ajuda a entender a dimensão do problema: "A Lombardia era o exemplo de saúde pública na Itália. Ver aquela região, que sozinha tinha mais leitos de UTI do que o resto da país, pedindo ajuda, tendo que transferir pacientes para outros locais porque estava sem condições de atendimento, foi marcante. Foi aí que começaram a entender a gravidade da situação".
Os testemunhos mostram a face real de um drama que parece ainda pouco compreendido no Brasil: o esgotamento dos sistemas de saúde trazido pela covid-19. Mais do que na saúde dos indivíduos, a pandemia tem mostrado pelo mundo um impacto predatório sobre a capacidade hospitalar geral do país. Sem leitos, equipamentos ou estrutura, o atendimento médico como um todo acaba comprometido, para todo tipo de patologia.
"Há aqueles que falam 'essa doença vai matar só 5 mil, só 10 mil. Não é essa a conta. A conta é que esse vírus ataca o sistema de saúde, e ataca o sistema da sociedade como um todo. Ele ataca a logística, ataca a educação, ataca a economia, então é uma série de estruturas. E no mundo inteiro é assim", resumiu, na semana passada, o ministro Henrique Mandetta (Saúde).
Mesmo em uma região menos impactada pela pandemia, Emanuelle conta que, junto com a súbita ocupação de hospitais com casos da doença, cresce também dificuldade e receio na busca por atendimento para outras patologias. "O medo da população com o vírus pode atrasar que outras patologias tenham diagnóstico. Com crianças, por exemplo, os pais evitam levar na emergência, mesmo quando pode haver uma necessidade, então tem atrasado diagnósticos".
Secretária Executiva de Vigilância e Regulação da Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa), a médica Magda Almeida explica: "O que se chama de esgotamento ocorre quando o sistema de saúde não tem capacidade de responder demandas que vão chegando, por vezes nem demandas mínimas, nem casos leves", diz. "Isso pode impedir ou atrapalhar tratamentos de dengue, influenza, mas também de problemas como AVC (acidente vascular cerebral) ou doenças do coração".
Ela destaca que, diante de um colapso total do sistema, o Estado acaba sendo obrigado a tomar "escolhas duras" na hora do atendimento à população. "Se você não tem condição de atender os mais leves, acaba tendo que priorizar aqueles mais graves, ou com mais condições de sobreviver. Nessa conta, acabam sendo priorizados os casos graves entre os mais jovens. Foi isso que ocorreu na Itália: começam a haver escolhas difíceis de maneira muito drástica".
Cecília Gomes, que já trabalhou como enfermeira em grandes hospitais do Brasil, vive hoje em Cork, uma das regiões mais afetadas na Irlanda. Ela conta que, como o país já tem um sistema de saúde sobrecarregado, o governo se antecipou em respostas para a crise antes do pico de casos. E, nesse sentido, Angelo, Cecília, Emanuelle e o ministro Mandetta são unânimes: para evitar uma escalada ainda mais dramática da doença, a melhor solução é o isolamento social.
"A Irlanda começou as medidas de isolamento social bem cedo, ainda com poucos casos, para não sobrecarregar o sistema de saúde, que já é sobrecarregado, e evitar o pico das contaminações", conta Cecília. "Os mercados e lojas que ficaram abertos estão limitando a quantidade de pessoas dentro da loja, com no máximo 20 ou 50, dependendo do tamanho".
Emanuelle Valente corrobora: "Realmente a impressão que se tem é de que o isolamento social é a única arma do cidadão comum contra o vírus", diz. Ela cita o exemplo de Milão, onde o governo chegou a organizar uma campanha contra o fechamento do comércio para evitar impactos na economia. O tiro saiu pela culatra: hoje, a Lombardia (região onde fica a cidade) registra cerca de 7 mil mortes, quase 60% do total da Itália.
“Não há receita de bolo. A gente tem que ver o que os outros países estão fazendo, e tentar tomar medidas mais antecipadas”, diz Magda Almeida, da Sesa. “Tivemos o privilégio de ter um tempo a mais para pensar, em relação com esses outros países, mas ainda é cedo para dizer se vamos conseguir achatar bem a curva de crescimento. De toda forma, o que temos de mais significativo é que medidas de isolamento têm ajudado a desacelerar essa progressão”.
A secretária destaca: “É uma conta simples. Se você encontrasse 15, 20, 30 pessoas antes, e agora encontra no máximo cinco, sua capacidade de infectar é reduzida. Ainda é cedo para confirmar qualquer coisa, mas é a opção que tem mostrado resultado”.
O POVO