sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

A história de um aniversário

Há 400 anos, o militar português Martim Soares Moreno incorporava o mito de herói fundador do Ceará
Hoje o Ceará completa quatro séculos de história "oficial" - escrita, datada e registrada segundo uma concepção histórica eurocentrista. A efeméride relaciona-se à atuação dos primeiros exploradores lusos na região, permeada sobretudo por conflitos com as populações indígenas aqui já estabelecidas. Mais especificamente, revela a data de aniversário de 400 anos de construção do Forte de São Sebastião, erguido pelo militar português Martim Soares Moreno e finalizado em 20 de janeiro de 1612, na área onde hoje se localiza a Barra do Ceará.

A prática de estabelecer episódios como "marcos", como pontos-chaves da trajetória de determinados objetos, permanece inevitável mesmo sob a égide dos novos paradigmas dos estudos históricos - fundamentados em olhares mais amplos e integrados, em detrimento das abordagens tradicionais orientadas especialmente pela eleição de datas, fatos e personagens.

No caso do Forte, trata-se de um "marco" que evoca a figura de Moreno, imortalizado como espécie de "fundador" do Ceará. Tal construção simbólica foi viabilizada, por exemplo, por obras como "Iracema" (1865), do escritor José de Alencar, na qual o português faz par com a famosa "virgem dos lábios de mel". A união representaria a "conciliação" entre o nativo e o europeu colonizador e, em última análise, a própria formação do povo brasileiro.

O Forte foi erguido por Moreno durante expedição para garantir em definitivo o processo de colonização do território cearense, por parte da Coroa Lusa. Antes, o militar já havia participado da expedição do também português Pero Coelho, primeiro explorador a empreender tentativa de ocupação do Siará Grande (região correspondente às capitanias do Rio Grande, Ceará e Maranhão).

"De acordo com Barão de Studart, Pero teria nomeado a terra de Nova Luzitânia, e de Nova Lisboa a povoação que fundou, nas margens do Rio Ceará. Esse estabelecimento teria ocorrido em 1604, quando Pero voltava da Serra da Ibiapaba, depois dos conflitos com índios e franceses e da tentativa de alguns dos seus subordinados de assassiná-lo", explica Mário Martins Júnior, professor assistente na UFC, cotutor do Programa de Educação Tutorial (PET-História) e doutorando da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

A empreitada de Coelho, na verdade, fazia parte de uma operação maior, chamada Jornada do Maranhão, cujo objetivo era retomar as terras daquela capitania, então dominadas pelos franceses. Na ocasião, Coelho fundou aqui o Forte de São Tiago, no mesmo local do sucessor São Sebastião. "De fato, no final do XVII, os franceses estavam aliançados com índios da Ibiapaba e além, nas terras do Maranhão. São justamente esses franceses que a Jornada de Pero combaterá", ressalta Martins.

Segundo o professor, seu trabalho segue uma linha de estudo que tenta perceber o Siará como um ponto dentro de uma rede bem mais ampla, multicontinental, a do Império Luso no início do século XVII, "cujo contexto de desenvolvimento era o de disputas marítimas, de conflitos em alto-mar, da ação de corsários, entre outros", observa Martins.

"As terras do norte eram fundamentais nesse empreendimento de domínio, de disputa de poder. Conquistar, ocupar e colonizar efetivamente essas áreas era uma tarefa árdua para a Coroa e alguns homens daqui percebiam com bastante alerta essa questão", esclarece. Em sua tese, o professor investiga também as ações de Pero Coelho no processo de conquista do Siará Grande. Segundo ele, Pero foi o primeiro Capitão-mor, mas acabou sendo rechaçado pela Coroa por suas ações de combate e de escravização dos índios com os quais teve contato na Ibiapaba. "A Coroa lusitana assumiu posturas diferentes nos diversos contextos de colonização. Até a primeira metade do século XVII observo uma política mais amistosa com os índios, que poderia significar colonização mais rápido. Na dificuldade de enviar colonos para estas terras, de acordo com Joaquim Veríssimo, aldeamentos poderiam representar uma forma profícua de colonização sem grandes custos", pontua Mário Martins.

Segundo o professor, essa foi uma política posta em prática por vários Governadores Gerais, como Francisco de Sousa, Diogo Botelho e Diogo de Meneses. "Claro que havia a possibilidade de escravizar os índios pela chamada ´guerra justa´, mas a legislação era dúbia e os governadores tinham interesse em frear os desmandos dos capitães", explica.

Imagem
"No caso de Pero, Botelho mandou aldear os índios e suspender e venda dos mesmos até que tudo fosse averiguado. Foi aberta uma devassa contra Pero e ele foi inocentado pelos principais homens que exerciam cargos administrativos no Brasil. Contudo, Botelho recorreu ao próprio Rei e conseguiu com que Pero saísse derrotado na questão. Os índios foram encaminhados à Ibiapaba sob os cuidados dos padres Francisco Pinto e Luís Figueira", complementa o professor.

Moreno, por outro lado, conseguiu sustentar o prestígio e a imagem. "Ambos foram ovacionados inicialmente. Para que Pero pudesse partir em sua Jornada, ele solicitou autorização do Governador Geral, que, em reunião com alguns dos homens mais importantes do Reino, decidiu nomeá-lo Capitão-mor da Jornada e do Siará. A ele foram concedidos direitos e deveres para que conduzisse a empreitada, mas somente porque correspondia às idealizações projetadas pelos outros homens", adverte Martins.

"Tal processo foi semelhante em Martim Soares Moreno, também agraciado com a patente de Capitão-mor do Siará. Contudo, conseguiu sustentar essa imagem projetada sobre ele, enquanto Pero não. As ações de Martim, pelo o que ele mesmo deixou escrito, estariam subordinadas aos interesses da Coroa, enquanto Pero, conforme aponta Botelho, teria agido por interesse próprio", conclui o pesquisador.

Assim, por essa razão, bem como pelas possíveis desavenças de Pero com o Governador Geral, sua imagem idealizada de colonizador e desbravador acabou minguando.

FIQUE POR DENTRO
Para além de fatos e datas
Segundo Mário Martins, a construção de um olhar mais amplo, mais integrado, dentro dos estudos históricos é algo recente no campo da História do Ceará. "Trabalhos como os de Rafael Ricarte da Silva, Gabriel Parente Nogueira e Almir Leal de Oliveira, por exemplo, foram escritos recentemente nessa perspectiva e estão publicados no livro ´Ceará: economia, política e sociedade - Séculos XVII e XVIII´, de nossa organização", explica.

Nesse sentido, o professor aponta ainda o livro de José Eudes Gomes (As milícias d´El Rey), que caracteriza como emblemático para a compreensão do Estado do Ceará. Fora do Estado, porém, o pesquisador esclarece que a situação é diferente.

"Trabalhos publicados por estudiosos do Rio de Janeiro, em oposição a uma historiografia paulista, tentam abordar essa perspectiva, juntamente com historiadores portugueses, há mais de uma década. Penso que o principal desafio é sair dessa posição tradicional de oposição de Metrópole versus Colônia e com isso perceber de forma mais profícua as ligações existentes dentro do Império. Meu desafio é pensar isso em termos de gênero, de constituição de masculinidades. Pero Coelho e Martim Soarem são dois expoentes em minha pesquisa", esclarece o historiador.

Especificamente sobre o período de colonização do Ceará, Martins aponta um problema concernente à escrita da história (historiografia), isto é, uma ausência de interpretação histórica sobre esse período.

"Geralmente o que observamos é um arrolar de fatos e datas, e uma disputa para saber aquela que seria a mais correta, com pouco ou nenhuma interpretação mais detida", critica o pesquisador. "O ofício do historiador não consiste em simples acúmulo de informações. É necessário perceber suas ligações, interpretá-las, desvelar seus significados, entre outros aspectos", adverte.

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