A oferta de serviços como a Netflix já caiu no gosto popular, mas o hábito de explorar plataformas on-line de transmissão de séries, filmes e documentários pode ser alterado em 2020, a partir da aprovação do Projeto de Lei do Senado (PLS) 57/2018, que disciplina a chamada comunicação audiovisual sob demanda (video on demand ou VoD).
O texto já está sendo bastante discutido e o relator da proposição, senador Izalci Lucas (PSDB-DF), deve entregar seu relatório na Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) no retorno dos trabalhos legislativos, em fevereiro de 2020. O PLS 57/2018 regula a distribuição de conteúdos fornecidos por banda larga diretamente a televisões, celulares e outros aparelhos por empresas como Netflix, Hulu e Prime Video, entre outras.
O projeto disciplina a comunicação audiovisual sob demanda e a incidência da Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (Condecine) sobre o setor, além da distribuição de vídeo doméstico, abrangendo as plataformas de compartilhamento. O texto prevê que a contribuição será progressiva de até 4% sobre o faturamento bruto apurado.
O texto também assegura a promoção pelos agentes econômicos de conteúdos audiovisuais brasileiros e destina recursos a produtoras cinematográficas do Norte, Nordeste e Centro-Oeste. A proposição altera ainda a Medida Provisória 2.228-1/2001, e as Leis 11.437, de 2006 e 12.485, de 2011.
De acordo com o projeto, as empresas contribuintes poderão descontar até 30% do valor para adquirir direitos, produzir obras cinematográficas ou videofonográficas brasileiras de produção independente. Parte desses 30% serão destinados às produtoras.
Regulação do audiovisual
Autor do PLS 57/2018, o senador Humberto Costa (PT-PE) defende a regulação do mercado e a produção audiovisual independente.
— Os investimentos feitos por uma empresa como a Netflix, em um ano, representam 60 anos de investimentos no Brasil. É absurda a diferença. Sem uma regulação do mercado, que fará com que essas empresas bilionárias participem da Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional [Condecine], a primeira a desaparecer no Brasil será a produção independente. Iremos perder vários talentos e diversidade nos conteúdos audiovisuais. Por isso, a importância do projeto — afirmou.
Humberto Costa discorda de que a regulação vá provocar aumento no preço dos serviços oferecidos pela Netflix e outras plataformas digitais. O autor do projeto ressalta que, em diversos países onde a cobrança é efetuada, o preço dos serviços não subiu.
— Isso é terrorismo de mercado de grupos que querem que empresas lucrem muito e não devolvam nada à sociedade. Esses mesmos grupos diziam que a cobrança de bagagem aérea diminuiria os custos das passagens. Qualquer brasileiro pode atestar o contrário. Isso é argumento típico de lobista. Do que precisamos é sermos enérgicos na regulação do setor para que ele não corra sem qualquer ação positiva do Estado — afirmou.
Na justificativa do projeto, Humberto Costa explica que empresas como Netflix, Hulu ou Vimeo vêm ganhando mercado rapidamente e competem com outros segmentos da mídia audiovisual, a exemplo da televisão aberta e dos serviços por assinatura, sem estar sujeitas a obrigações equiparáveis.
A aplicação do Condecine por título ofertado seria abusiva para essa indústria, pois o estoque de títulos é muitas vezes superior ao fluxo de demanda no mercado brasileiro, avalia o autor do PLS 57/2018.
“Optamos, pois, por aplicar uma contribuição progressiva de até 4% sobre o faturamento bruto apurado, acompanhando práticas de outros países para esse setor. Preserva-se, assim, uma proporcionalidade com o porte das operações dessas empresas no mercado local”, observa Humberto Costa.
Conteúdo nacional
Quanto à produção de conteúdo, o senador pelo PT de Pernambuco ressalta que impor uma proporção de títulos brasileiros no catálogo acima do razoável iria induzir empresas globais a restringir o tamanho da oferta no Brasil, prejudicando o consumidor.
“Preferimos, pois, atrelar o número de títulos disponíveis ao porte da produção local de material audiovisual nos últimos cinco anos, ao porte das empresas provedoras, e impor condições de priorização dos títulos nacionais nos mecanismos de busca e seleção oferecidos pela provedora, implantando o que vem sendo chamado de destaque visual ou proeminência desses títulos”, explica o autor do projeto.
Humberto Costa aponta ainda o número crescente de empresas globais que oferecem serviços a partir do exterior diretamente ao público brasileiro, sem manter representação no país.
“Somos, evidentemente, favoráveis à prática, que beneficia o consumidor nacional, e acreditamos que essa oferta deva ajustar-se à legislação local”, ressalta o senador.
O autor do PLS 57/2018 observa que o projeto reproduz mecanismo de estímulo à regionalização da produção audiovisual brasileira, nos moldes do que já é feito pela Lei do SeAC (Lei 12.485, de 2011, que trata da comunicação audiovisual de acesso condicionado). O texto estipula que o mínimo de 30% dos recursos destinados ao Fundo Setorial do Audiovisual sejam empregados em produções das regiões Norte, Nordeste e Centro Oeste.
Impacto da arrecadação
O PLS 57/2018 tramita atualmente na CAE, onde é relatado pelo senador Izalci Lucas (PSDB-DF). Ex-secretário de Ciência e Tecnologia do Distrito Federal, ele deverá apresentar voto sobre a matéria entre fevereiro e março de 2020.
— O parecer está em negociação. Estamos ouvindo ainda o governo e todos os outros interessados para buscar um entendimento. Ainda estamos longe de um consenso, mas pedi agora ao Ministério da Economia para discutir o impacto da arrecadação, a questão do Condecine, a forma de cobrança. Haverá cobrança dessas empresas que vão vir investir no Brasil. Hoje tem um critério de cobrança, talvez a gente tenha que mudar o sistema. A gente pediu o levantamento de todo o impacto disso. Tem a questão do incentivo, como proteger um pouco o conteúdo nacional, como podemos resguardar isso — afirmou Izalci.
Em setembro, o senador Zequinha Marinho (PSC-PA) apresentou a primeira emenda ao PLS 57/2018, como forma de possibilitar a migração do serviço de TV por assinatura (TVA) para o serviço de radiodifusão de sons e imagens.
A nova concepção, de acordo com o autor da emenda, suprirá uma lacuna específica da Lei 12.485, de 2011, ao franquear, às outorgas de TVA vigentes à época da aprovação da norma, “uma adaptação plenamente plausível e viável do ponto de vista técnico e histórico, dadas as semelhanças com o serviço de radiodifusão”.
O texto do PLS 57/2018 ainda será analisado na Comissão de Educação (CE) e na Comissão de Ciência e Tecnologia (CCT), seguindo posteriormente à Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), onde será apreciado em decisão terminativa — se aprovado, seguirá direto para a Câmara dos Deputados, a não ser que haja recurso para votação do projeto em Plenário.
"Abuso regulatório"
Em outubro, foram realizadas duas audiências públicas para debater o PLS 57/2018. O primeiro debate, ocorrido no dia 7, contou com representantes do Ministério da Economia, do Ministério da Cidadania, do Sofá Digital, da Claro Brasil, da Motion Picture Association of America (MPA), da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), da Netflix, da Associação Brasileira de Programadoras de TV por Assinatura (ABPTA), da Associação Brasileira de Rádio e Televisão (Abratel), da Neotv, da Agência Nacional do Cinema (Ancine) e da Associação de Produtoras Brasileiras de Audiovisual do Centro Oeste /APBA-CO).
Na ocasião, o representante da MPA, José Maurício Fittipaldi, disse que o PLS 57/2018 apresenta riscos de caracterização de abuso regulatório, já que a proposta pode resultar em reserva de mercado. Ele enfatizou a necessidade da observância de dados técnicos e comportamentais do setor, antes de qualquer medida nesse sentido. Ao afirmar que a experiência europeia não pode servir como modelo para implementação das regras no Brasil, Fittipaldi explicou que as diretrizes do tema na Europa têm menos de um ano de aplicação, e que os estados membros têm até setembro de 2020 para adotar as medidas por completo.
— Não há dados, não há experiência a demonstrar que esse caminho é o melhor. O único dado que existe sobre a experiência europeia é do mesmo mês em que a medida foi implementada, e o relatório não considera qualquer tipo de efeito dessa diretiva. Estamos num cenário desafiador, dentro de um contexto de crise econômica, onde fica claro que esse projeto é altamente intervencionista e excessivo — disse Fittipaldi.
Por sua vez, a diretora de Relações Governamentais e Políticas Públicas da Netflix, Paula Pinha, considerou que a tributação de serviços sob demanda não produz os mesmos efeitos conseguidos em outros setores do audiovisual, como cinema e televisão. Para ela, a cota sugerida no PLS 57/2018 prejudica produtores e consumidores, uma vez que os catálogos de ofertas de obras deverão ser reformulados com a futura aprovação da lei.
— Se um dos pilares do projeto é garantir a presença de conteúdo brasileiro nesse novo segmento de mercado, a discussão de medidas alternativas de fomento à atividade seria o caminho mais acertado — afirmou Paula Pinha.
Legitimidade e urgência
O segundo debate, ocorrido no dia 17, contou com representantes da Associação Paulista de Cineastas (Apaci), do Sindicato da Indústria Audiovisual (Sicav), da Brasil Audiovisual Independente (Bravi), do Intervozes e da Box Brasil.
Coordenadora do Intervozes, organização que atua pela efetivação do direito à comunicação no Brasil, Marina Pita disse que o PLS 57/2018 é importante e urgente. Ela ponderou que VoD é a disponibilização de conteúdos na internet e, portanto, um mercado passível de regulação. A debatedora observou, no entanto, que a proposta deve estar em consonância com a Lei 12.485, de 2011, que já regula a produção de conteúdo audiovisual por assinatura.
— Vale lembrar que o Brasil é signatário da Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, e a cultura é um elemento estratégico das políticas de desenvolvimento nacional. Então, o projeto de lei não só é necessário, mas legítimo e urgente — disse Marina Pita.
Já o diretor da Apaci, André Klotzel, observou que bens de consumo no Brasil são tributados. O audiovisual, segundo ele, também é um bem de consumo, só que imaterial, mas sem taxação no país. Ele considerou “absurda e desproporcional” a não tributação dessas operadoras, tendo em vista a abrangência irrestrita delas, por meio da internet, e o expressivo volume de recursos mobilizados.
— O estabelecimento de cotas não é uma invenção, não é um gesto autoritário nem cerceador. Pelo contrário: é uma compensação. Então, a subvenção ao audiovisual segue o mesmo caminho, e 4% de contribuição, que vai se converter em incentivo à produção brasileira, é algo irrisório — afirmou Klotzel.
Na mesma audiência, o senador Humberto Costa explicou que a sua preocupação, ao apresentar o PLS 57/2018, foi criar condições para alavancar um setor em que o Brasil tem demonstrado competência, num momento de “guerra cultural” no país.
— Hoje a cultura está sob fogo cerrado, exatamente por seu caráter libertário e de contribuição para a formação do pensamento crítico. O mercado de VoD é uma indústria, e a regulação é um favorecimento a esse setor, que não pode ficar ao 'deus-dará' — comentou Humberto Costa, na ocasião.
O que pensam os usuários
A expectativa dos internautas ouvidos pela Agência Senado é de que a contribuição prevista no PLS 57/2018 poderá encarecer os serviços oferecidos por plataformas digitais como a Netflix.
Pedro Salum, CEO da LoopKey, considera o projeto “um absurdo” e ressalta que a Netflix representa a democratização da cultura.
— É taxar por taxar. O dinheiro não vai ser revertido em nada. [A iniciativa] tem cara de lobby de TV a cabo, já que [a plataforma digital] é muito mais acessível. Além de tudo isso, é incentivo à pirataria, porque o imposto nunca vai ser 2%, 4%. Logo as pessoas, que hoje pagam, voltam a piratear — afirmou Salum.
Por sua vez, a servidora da Secretaria de Saúde do Distrito Federal, Bianca Gazeta, considera a Netflix “uma super opção de lazer acessível” e diz que a tarifação das empresas é “justa”.
— Não tinha conhecimento desse projeto. Acho, em parte, a tarifação justa, já que todos nós somos obrigados a pagar impostos. Porém, quem vai acabar pagando é o consumidor, no fim das contas — afirmou Bianca.
Arquiteta e empresária, Caroline Brito acredita que a contribuição a ser paga pelas plataformas digitais será repassada aos consumidores.
— Como empresa, a Netflix preza pelo lucro. E o custo de algo sempre vai para o consumidor. Mas não acho isso ruim. Acho que o certo deve ser aplicado, sem exageros, tanto para quem vai gerar a tarifa quanto para quem vai pagar a tarifa, a Netflix, que a passará indiretamente para os usuários — concluiu Caroline.
Fonte: Agência Senado
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