As acusações feitas pelo deputado estadual André
Fernandes (PSL), na Assembleia Legislativa, sobre o suposto envolvimento
de outros deputados com facções criminosas, chacoalharam a política
cearense e levantaram um debate em relação à imunidade parlamentar.
Afinal, a liberdade de fala garantida por Lei aos políticos possui
limites? Especialistas em Direito ouvidos pelo Diário do Nordeste se
dividem sobre a extensão dessa prerrogativa e as situações em que ela
pode ser evocada.
De acordo com o artigo 53 da Constituição Federal, "os deputados e
senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas
opiniões, palavras e votos". Essa imunidade é assegurada a deputados
estaduais e federais, senadores e vereadores. Ou seja, os parlamentares
no exercício do mandato têm liberdade para expressar seu pensamento e
estarão "protegidos" pela Justiça de eventuais questionamentos. Aliás,
esse é o argumento que André Fernandes tem usado para se blindar das
críticas na Assembleia.
O Supremo Tribunal Federal (STF) tem um entendimento de que a
imunidade parlamentar é absoluta quando as manifestações ocorrerem
dentro do ambiente legislativo e também fora desse espaço, ainda que de
forma "relativa". O conteúdo das palavras, no entanto, gera
controvérsias na Suprema Corte.
Um dos casos emblemáticos na Justiça é o que foi protagonizado pelo
então deputado federal, Jair Bolsonaro, hoje presidente da República
pelo PSL, e a deputada federal Maria do Rosário (PT). Em 2014, na
tribuna da Câmara, Bolsonaro disse que "não a estupraria porque ela não
merecia".
A petista denunciou o parlamentar ao STF por crime de apologia ao
estupro. Ele virou réu e teve que publicar uma nota de retratação à
deputada e pagar uma indenização, após decisão judicial, neste mês de
junho. Na época, a declaração feita por Bolsonaro no plenário foi
repetida por ele em entrevista à imprensa, ou seja, fora do ambiente do
Congresso Nacional.
Isso, para alguns ministros, segundo os votos no julgamento para
recebimento da denúncia, já torna frágil a garantia da imunidade
parlamentar. Entretanto, o que foi definitivo para a maioria dos
integrantes do Supremo decidirem não amparar Bolsonaro com a imunidade e
torná-lo réu é que a fala do ex-deputado não tinha relação com o
mandato.
Cautela
O caso difere de outro analisado pela Corte em 2016, quando o então
presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, denunciou o
ex-deputado federal, Jean Wyllys (Psol), pelos crimes de calúnia,
difamação e injúria, durante votação do impeachment da ex-presidente
Dilma Rousseff (PT).
Na ocasião, o deputado do Psol chamou Cunha de "ladrão" e disse que a
Câmara era conduzida por um "traidor, conspirador, apoiado por
torturadores, covardes, analfabetos políticos e vendidos". A Segunda
Turma do STF, no entanto, rejeitou a queixa de Eduardo Cunha.
Relator do caso, o ministro Gilmar Mendes apontou, primeiramente, o
fato de que as declarações foram feitas no recinto da Casa Legislativa.
Depois, que o conteúdo da fala de Jean Wyllys estava ligado ao mandato
parlamentar, uma vez que Eduardo Cunha era a autoridade responsável por
autorizar o processo de impeachment e, portanto, poderia ser alvo de
críticas.
Neste mesmo julgamento, porém, Gilmar Mendes citou o ministro Luís
Roberto Barroso ao ressaltar que a imunidade parlamentar não pode
significar "irresponsabilidade" e que o "excesso de linguagem pode
configurar, em tese, quebra de decoro", algo que deve ser enquadrado
pela própria Casa Legislativa.
Membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político
(Abradep), a advogada Isabel Mota chama atenção para os excessos
cometidos fora do ambiente parlamentar. Para ela, a imunidade não
deveria alcançar esses casos, mesmo que a fala tenha vinculação com a
função legislativa.
Fora da tribuna
"Eu acho que, naquilo que o deputado falar na tribuna, ele é livre.
Os excessos devem ser apurados pela Justiça comum e enquadrados pelo
Conselho de Ética. Fora da atividade parlamentar, ainda que ele esteja
falando do mandato, a imunidade não deve se estender. Atribuir um crime a
alguém, caluniar ou ofender fora da tribuna, não tem como alegar
imunidade", considera.
No caso de André Fernandes, em que o deputado repetiu acusações
feitas na tribuna nas suas redes sociais, Mota avalia que ele poderia
não ser amparado pela imunidade. Para a advogada, o parlamentar deve ter
cautela e não pode "abusar" da sua liberdade de expressão.
Especialista em Direito Eleitoral e Político, Rodrigo Martiniano,
argumenta que, de acordo com entendimento atual do STF, a imunidade
alcança o deputado em qualquer meio, inclusive nas redes sociais. Ele
pondera os casos em que as declarações não têm conexão com a função ou
não são "proporcionais".
A imunidade parlamentar, ressalta o especialista, possui limites.
"Não devem ser admitidas ofensas pessoais, difamações à honra, bem como
expedientes fraudulentos e acusações de crimes sem qualquer suporte
fático e razoabilidade, apenas pelo deliberado intuito de macular a
reputação de um deputado", opina.
Doutor em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza
(Unifor), o professor Filomeno Moraes frisa que a imunidade protege o
parlamentar mesmo com "opiniões toscas, desagradáveis e ofensivas". Ele
acredita que os abusos devem ser resolvidos pela via política.
Conselho de Ética
"A liberdade nas opiniões e palavras tem o limite que, politicamente,
pertence à própria Casa Legislativa, nas situações em que se usa
abusivamente das prerrogativas", afirma. "Tal é a problemática da quebra
do decoro, que coloca o parlamentar no limite, sob o julgamento dos
seus pares, com direito à ampla defesa e ao contraditório".
Na tribuna da Assembleia Legislativa, André Fernandes acusou colegas
de envolvimento com facções criminosas, sem citar nomes. Em seguida, ele
apresentou uma denúncia ao Ministério Público do Estado (MPCE), em que
acusa Nezinho Farias (PDT) de envolvimento com a facção Primeiro Comando
da Capital (PCC). O deputado pedetista nega irregularidades.
O diretório estadual do PSDB entrou com uma representação contra o
deputado do PSL no Conselho de Ética da Assembleia, pedindo abertura de
processo por quebra de decoro parlamentar. O PDT anunciou que vai
ingressar com uma representação até a próxima segunda-feira (24). Outras
siglas também avaliam acionar o órgão.
dn
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